sexta-feira, 24 de junho de 2011

O presunto não é a surpresa do velório.

    Eu poderia estar abalado pela morte da minha quieta mãe, vivemos no silêncio durante vinte e sete anos - jamais estive sem estar ao lado dela com medo de perder uma monossílaba que fosse de sua voz -, mas o que me preocupava  e o que venho ao caso não é essa fatalidade, meu fim não é atar as duas pontas da minha vida, tenho por objetivo desprestigiar um primo insuficientemente distante. 
    "Mas que frieza desse recém-orfão!" - diria uma beata ou mesmo uma velha póstuma-puta, mas não enxergo razão em sentir falta de alguém cuja boca  por opção, sublinho essas duas últimas palavras, nunca pronunciou um som. Era como se eu chorasse por um quadro que durante muito tempo não teve lugar fixo e enfim o encontrou. Guardava alguns retratos de minha mãe.
    Iremos ao ponto: me afligia o momento em que o desprestigiado me encontrasse no velório. Ele a vida toda se aproveitou de situações em que eu estivesse infortunado para deixar-me sentindo inferior com uma simples pergunta: "E ai, como você está?"
    Estava determinado a dar uma resposta digna a vingar todos esses anos em que a sua superioridade coexistia com a minha denigração, de tal forma que ele se sentisse envergonhado até de frente ao defunto. Assim que a pergunta fosse feita, eu responderia: "Morto!", logo em seguida encenaria uma tentativa de autoflagelação e me jogaria ao chão bem à moda de criança sem jujubas, ou também ,ultimamente, adolescente sem internet.
    Arrumei-me como se fosse o pior inimigo da minha mãe, a minha auto-confiança era tamanha que só me lembrava tão confiante durante o sono... a ansiedade suava como uma obesa desajeitada trocando galão de água.
    Chegada a hora, ao lado dos meus irmãos e dos lenços, eu acreditava ser o único a segurar o riso, cada passo do desprestigiado em minha direção se tornava mais penoso para eu não mostrar que escovei excessivamente os dentes. 
    Cumprimentou todos os três primeiros à minha esquerda, meus pés quase dançavam o moon walking de ansiedade, e finalmente ao chegar a minha vez ele colocou as mãos no bolso, inclinou o corpo pra frente e pra trás demonstrando segurança, olhou para seus próprios sapatos e logo depois para os meus, subiu os olhos rapidamente e me perguntou apertando a gravata: "E ai, como estou?"
    Só pude responder o que já tinha ensaiado e, de certa forma, com uma maior convicção.

Cego... surdo e mudo

O surdo com muitos olhos surra o mudo que escuta perfeitamente os passos culpados do cego que, com muito tato, fugiu.
O surdo não ouvia o suplício do mudo, o mudo não desmascarava o cego, o cego não  enxergava o dano que causou a ambos.

Decidido

    Quando decidimos mudar, todos ao nosso redor mudam também: ou de lugar ou para nos acompanhar, tudo depende da intensidade do desespero sentimental.